Pegadas de Adão
Imagine a cena: um professor cético desafia seus alunos religiosos perguntando se algum deles acredita na estória do Lobo Mau e os três porquinhos como sendo fato real. Ninguém, é claro, poderia achar que aquilo havia acontecido de verdade; afinal, porcos e lobos não falam, não constroem casas nem podem com um simples assopro pôr abaixo uma edificação de palha ou madeira. É lógico que se trata de uma fábula e não de uma história real.
E quanto a Bíblia?, poderia prosseguir o professor? Podemos, em sã consciência, considerar histórica uma narrativa que apresenta uma serpente falando e enganando um casal desnudo, num jardim paradisíaco? Não parece que essa é uma estória simplória demais para justificar o início da humanidade?
Iguais aos porcos e lobos, serpentes não falam, nem oferecem frutos aos que passam perto de uma árvore. Estariam os primeiros capítulos do Gênesis mais para fábula do que para um relato histórico das origens? Muitos teólogos entendem que sim, que não podemos tomar a sério aquilo que Moisés escreveu. Chegam a sugerir que “devemos cortar esses capítulos fora de qualquer evento especificamente histórico”.
Autores clássicos como C. S. Lewis e Teilhard de Chardin chegaram a supor que Adão seria o primeiro exemplar do homo sapiens ou de uma raça que se seguiu à cadeia evolutiva. Noutras palavras, eles propõem uma simbiose entre a Bíblia e a teoria da evolução proposta por Darwin, o que colocaria Adão como resultado das transformações sofridas pelos hominídeos que o antecederam. Esse processo teria demorado milhões de anos para se concretizar. Clique aqui para entender um pouco mais sobre o evolucionismo-teísta.
Embora devamos admitir que a história de Adão e Eva parece um tanto estranha ao senso comum, pois nada vemos no mundo real que lembre o ambiente endêmico que a Bíblia descreve, devemos lembrar que até mesmo os melhores advogados não se aventurariam a acusar de “mentirosa” uma pessoa apenas porque seu depoimento reflecte um fato difícil de acontecer. A história dos processos jurídicos está repleta de casos “estranhos” e aparentemente “improváveis” que constituíam a mais pura verdade. Assim, um jurista experiente prefere avaliar de modo neutro tudo o que é dito nos autos e, então, buscar fora deles “provas” ou “evidências” que deponham contra ou a favor daquilo apresentado.
E não há melhor argumento a favor de um depoimento do que o apelo a testemunhas. Há outras pessoas que viram ou ouviram aquilo que se afirmou? Uma pessoa sozinha pode mentir ou se equivocar descrevendo algo que não aconteceu. Porém, quando diversas pessoas, sem contato direto entre si ou com depoente, afirmam basicamente o mesmo que ele contou, diminuem-se para quase zero as chances de haver um equívoco sistêmico. Ainda que se trate de um relato estranho, ele tem o mérito da lógica racional e pode realmente ter ocorrido. Mas é claro que duas pessoas jamais contam a mesma história ou descrevem o mesmo evento igualmente. Existem contradições não essenciais que são perfeitamente aceitáveis. O importante é que o testemunho se harmonize nas bases que o sustentam.
Transferindo para o Gênesis os conceitos que acima apresentamos, pergunta-se: há testemunhas, fora da Bíblia, que confirmam as bases do que Moisés descreveu? Afinal, se Adão de fato existiu, ele estaria no topo das genealogias do mundo inteiro, pois todas as antigas civilizações procederiam geneticamente dele e deveriam fazer referências a esse ancestral comum.
Não se deve esperar, contudo, que as antigas tradições regionais sejam um decalque exato da narrativa bíblica. A história nos revela que houve ondas de “apostasia” em relação à teologia monoteísta que saiu do Éden. A comparação, portanto, deve se resumir na permanência de um esboço similar ou de elementos antigos que sobreviveram ao distanciamento étnico em direção ao politeísmo posterior.
Vasculhado, pois, as origens da civilização, até o ponto mais distante que a história escrita consegue nos levar, chegamos por volta do terceiro milênio antes de Cristo, quando surgiram os primeiros livros da humanidade. Eles foram inicialmente produzidos num sistema de escrita pictogrâmica, no qual as figuras representavam objetos. Depois vieram os primeiros traços ideogrâmicos, quando as figuras começaram a representar ideias e conceitos. Finalmente, surgiu o sistema fonogrâmico, no qual cada figura representa um som.
Como ainda não havia o papel que hoje conhecemos, a escrita era feita na argila ainda úmida e depois secada ao sol ou em fornos especialmente preparados para esse fim. Este sistema muito ajudou na preservação dos documentos, pois, uma vez secos, o barro escrito poderia durar milhares de anos debaixo da terra.
Os caracteres eram normalmente traçados a partir de pequenos sulcos feitos na Argila que mais pareciam cunhas em miniatura. Por isso receberam o nome de cuneiforme, isto é, escrita em forma de cunha.
Curiosamente, os primeiros registros escritos da humanidade foram produzidos mais ou menos na mesma época, na Mesopotâmia quanto no Egito. Por que justamente nesses dois países? Provavelmente porque foram os dois centros que mais rapidamente se desenvolveram após o Dilúvio, gerando as mais antigas comunidades urbanas da história. Ali, a unificação política dos clãs e das tribos em torno de um sistema religioso/governamental (como foi o caso de Babel) resultou numa sociedade centralizada, que se organizou a partir de uma estrutura bastante complexa. Esse modelo social exigiu em pouco tempo a criação de um sistema de contabilidade e comunicação confiáveis que pudesse servir de referência no comércio e na repartição dos bens.
Assim, transcorreram anda mais de mil anos entre esse período e o nascimento de Moisés. Porém, se a história que ele escreveu for verdadeira, devemos, obrigatoriamente, encontrar a partir daí as primeiras referências a Adão, já que este seria, de acordo com o Gênesis, o genitor comum de todos os povos. E, por incrível que pareça, essas referências existem e foram encontradas numa quantidade maior que o necessário para validar o texto bíblico.
Milhares de tabletes cuneiformes foram escavados na região que corresponde a antiga Mesopotâmia (atual Iraque). Eram recibos, cartas, leis, documentos de propriedade, etc… Alguns continham listas genealógicas e históricas tradicionais sobre os primórdios da humanidade. Ao avaliá-los, qual não foi a surpresa dos arqueólogos ao perceberem que muitos traziam semelhanças bastante acentuadas com o que seria posteriormente escrito na Bíblia.
Uma extraordinária coincidência foi percebida, por exemplo, na forma como os antigos documentos egípcios e mesopotâmicos chamavam o primeiro ancestral da humanidade: Admu, Adime, Adapa, Alulim, Alorus, Atûm, Admuzi, etc. Ora, não seria razoável supor que todas formas constituíam variações ortográficas do esmo nome Adão? Note que a forma hebraica ’Adam ‘ se encaixa naturalmente em todas essas variações citadas acima. A semelhança fonética é muito evidente. É como se conhecêssemos um homem chamado João, mas que os alemães chamam de Johann, os ingleses de John, os espanhóis de Juan e os franceses de Jean. Apesar das diferenças idiomáticas, existe uma raiz temática que permanece em todas as formas de escrita ou pronúncia.
Um tablete encontrado em 1934 no sítio do Korsabá, a 22 km de Nínive, contém uma lista de reis assírios começando com “dezessete reis que viveram em tendas”, provavelmente líderes de povos nômades. Tudia é o primeiro nome da lista seguido por Admu, que, mui provavelmente, seria o título de realeza advindo de um ancestral famoso, como foi o nome de César para os imperadores romanos. Mais à frente, noutra lista, encontramos o 37º rei chamado Puzar-Assur. Ele era um dos vários reis nomeados em homenagem ao seu ancestral Assur, o fundador da Assíria. Em Gênesis 4:22, encontramos o mesmo num dos descendentes de Caim que se autodenominou Tubalcaim. Assim, é possível que Adamu tenha sido um rei que assumiu esse nome em homenagem a outro Adamu importante que existiu antes dele. E por que não supor que seria uma homenagem ao Adão que viveu no Éden?
Os arqueólogos também perceberam que pelo menos seis elementos históricos do Gênesis podiam ser encontrados nos tabletes que foram traduzidos por peritos em paleografia. Comumente, eles mencionavam:
- A criação e desobediência de um casal que perdeu o paraíso.
- A maldição que seguiu à desobediência, trazendo a morte aos habitantes da terra.
- O início da família humana marcado pela tragédia de um fratricídio.
- A humanidade que se tornou má e, por isso, foi destruída num dilúvio.
- O perecimento de todos, menos alguns que foram preservados pelos deuses.
- Uma confusão de idiomas que espalhou os homens pelos quatro cantos da Terra.
Esses paralelos literários derrubaram a tese de que a narrativa do Gênesis seria um mito criado por Moisés. Alguns, no entanto, continuaram a negar a historicidade bíblica, sugerindo, então, que esses relatos mesopotâmicos eram os originais e que o Gênesis seria um plágio de obras literárias já existentes.
Desmentindo essa última hipótese, K. A. Kitchen escreveu que “a suposição comum de que este relato [bíblico] é simplesmente uma versão simplificada de lendas babilônicas é um sofisma em suas bases metodológicas. No Antigo Oriente Próximo, a regra é que relatos e tradições podem surgir (por acréscimo ou embelezamento) na elaboração de lendas, mas não ao contrário. No Antigo Oriente, as lendas não eram simplificadas para se tornar pseudo-histórias como sido sugerido para o Gênesis”.
Ao contrário de ser um plágio, o Gênesis possui características de ser quase uma correção daquilo que o antecede. Prova disso é o fato de que dentre todos os outros textos, ele é o único que assume um monoteísmo clássico em meio a versões milenares que preferiam atribuir aos “deuses” a obra de criação e o julgamento do planeta Terra.
Até mesmo Lévi-Strauss, que considerava o relato da criação um mito, foi forçado a admitir que “grande surpresa e perplexidade surgem do fato de que esses temas básicos para os mitos da criação são mundialmente os mesmos em diferentes áreas do globo”, principalmente fora do Oriente Médio.
Se o relato bíblico fosse apenas uma reprodução de lendas culturais da Mesopotâmia, não deveríamos encontrar essa mesma história tão largamente ensinada entre povos que viviam fora das terras bíblicas e não tinham, até onde se saiba, algum contato com as Escrituras hebraicas ou com a tradição sumeriana. Foi uma grande surpresa para muitos missionários encontrar, entre aborígenes e tribos isoladas das Américas, Ásia e Oceania, tradições orais tremendamente similares à narrativa bíblica. Vários missiólogos e antropólogos reconheceram a importância dos paralelos bíblicos nas culturas pagãs e as coletaram em livros que se tornaram best-sellers em várias partes do mundo.
Ao norte de Calcutá, Índia, viviam dois milhões e meio de pessoas conhecidas como povo Santhal. Sua antiquíssima tradição conta que um Deus chamado Thakur Jiu criou do barro o primeiro homem e deu-lhe o nome de Haram (note a semelhança fonética com o nome ‘Adam em hebraico). Depois criou a mulher que recebeu o nome de Ayo. Ambos foram colocados num jardim paradisíaco chamado Hihiri Pipiri. Ali um ser sagaz chamado Lita fez cerveja de arroz e ofereceu ao casal. Desobedecendo às ordens divinas, eles beberam o líquido e dormiram. Quando acordaram perceberam que estavam nus.
Distante da Índia, encontramos outra remota tradição contada por Karen, da Birmânia. Ela está preservada em antigos hinos que foram traduzidos de um primitivo dialeto no fim do século XVIII. Uma das estrofes litúrgicas diz que um Deus chamado I’wa formou o mundo a partir de água e a terra produziu o fruto da tentação. Havia ordens explícitas para ninguém comê-lo, mas um espírito rebelde chamado Um-Kaw-Lee enganou duas pessoas fazendo-as experimentar o alimento da morte. Por causa disso, os homens ficaram sujeitos à doença, envelhecimento e punição.
Essas são apenas duas das muitas tradições semelhantes ao relato bíblico que podem ser encontradas fora do Oriente Médio. Portanto, o que nos resta é aceitar a hipótese de que tanto o Gênesis quanto esses mitos (por mais distorcidos que estejam) procedem igualmente de uma mesma raiz histórica, a saber, a tradição adâmica. Todos eles narram, à sua maneira, um fato que realmente aconteceu e ficou marcado, por muitas gerações, na memória dos povos. A distorção, é claro, foi se tornando mais acentuada à medida que os descendentes de Adão mergulhavam no politeísmo, perdendo de vista o aspecto monoteísta de Deus que vinha desde o Éden.
Fonte: SILVA, Rodrigo P. Escavando a verdade: a arqueologia e as incríveis histórias da Bíblia. Casa Publicadora Brasileira, p. 51-45, 2008.