maio 9, 2024

Blog do Prof. H

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Teologia Histórica – A composição do Cânon Bíblico (da Idade Média à Modernidade)

Esta é a terceira parte do assunto. Confira as duas anteriores logo após o artigo.

O CÂNON NA IDADE MÉDIA

Por mais de um milênio, a igreja prosseguiu adotando como sua Bíblia a Vulgata Latina, formada pelo Antigo Testamento com os Apócrifos e o Novo Testamento. No entanto, duas grandes mudanças ocorreram na Idade Média e levaram a um novo questionamento sobre quais livros de fato pertenciam ao cânon das Escrituras.

A primeira mudança [47] foi a elevação da Igreja Católica Romana à posição de autoridade suprema — uma autoridade maior que a das Escrituras. Essa mudança conduziu à afirmação de que a Igreja Católica Romana tinha autoridade para determinar o cânon das Escrituras. Como Guido Terreni afirmou:

“Da autoridade da igreja os livros canônicos derivam seu poder de autoridade. Por meio da igreja os livros da Bíblia foram aceitos como detentores de autoridade. Com base em sua autoridade [da igreja] os fiéis creem com firmeza que elas [as Escrituras canônicas] contêm infalivelmente a verdade. É apenas com base na autoridade da igreja que se pode provar que precisamos crer nelas com firmeza”.[48]

Além disso, de acordo com Gabriel Biel:

“Devemos crer na verdade que a santa madre igreja define ou aceita como católica com a mesma veneração com que creríamos se ela estivesse expressa nas Sagradas Escrituras”.[49]

Como a Igreja Católica havia definido o cânon das Escrituras, todos os cristãos deveriam aceitar sua determinação do cânon.

A segunda mudança foi a ascensão do importante movimento chamado humanismo, na segunda metade da Idade Média. Não se deve confundir esse movimento com o humanismo secular dos séculos 20 e 21, espírito secularizante com uma nítida natureza anticristã. O humanismo dos séculos 14,15 e 16 era fundamentalmente um movimento cultural e educacional cujo foco era promover a eloqüência oral e escrita.[50]

Surgido na Renascença italiana e estendendo-se para o norte da Europa, o humanismo não era anticristão e foi adotado por muitas figuras importantes da igreja. O lema do humanismo era “ad fontes” : “de volta às fontes”. Para a igreja, isso significava uma volta a seus escritos fundamentais: o Antigo Testamento hebraico, o Novo Testamento grego e as obras da igreja primitiva. Isso levou a vários desdobramentos e perguntas: em primeiro lugar, a diferença entre a Bíblia hebraica e a Vulgata Latina, que incluía os Apócrifos, ficou mais uma vez evidente. E de novo surgiu a pergunta: o Antigo Testamento da igreja deve se basear na Bíblia hebraica, mais curta, ou na Septuaginta, que lhe acrescenta seus escritos apócrifos?

Em segundo lugar, ressuscitou-se a antiga distinção que Jerônimo fazia entre livros canônicos e livros apócrifos. O tradutor da Vulgata havia declarado que os Apócrifos poderiam ser lidos “para a edificação do povo”, mas não se poderia usá-los para “conferir autoridade às doutrinas da igreja”[51]. Para estabelecer suas doutrinas, a igreja podia recorrer somente às Escrituras canônicas. Agostinho havia obscurecido essa distinção e, desse modo, a igreja, seguindo sua influência, havia estabelecido certas convicções e práticas com base na autoridade dos escritos apócrifos. Por exemplo, o clássico texto de prova para a crença no purgatório e para a prática de orar pelos mortos era 2Macabeus 12.38-45. Surgiu a pergunta: A igreja deveria continuar baseando suas convicções e práticas nos Apócrifos ou deveria usar somente as Escrituras canônicas para estabelecê-las?

Em terceiro lugar, uma comparação da tradução latina com o Novo Testamento grego revelou que a Vulgata era uma tradução que não refletia bem o original em certos trechos. Essa descoberta foi especialmente importante em várias passagens, porque certas convicções e práticas da igreja se baseavam na versão latina. Por exemplo, a versão da pregação evangelística de Jesus (Mt 4.17) na Vulgata trazia ״fazei penitência”. Essa ordem do Senhor foi usada pela igreja como fundamento bíblico do sacramento da penitência — a prática de orar, dar esmolas aos pobres, privar-se de certos prazeres físicos etc., a fim de receber a graça de Deus depois de haver pecado. Erasmo, eminente estudioso humanista, insistia na tradução do original grego por “arrependei-vos”, um profundo chamado à mudança no interior do coração, não a um ato exterior imposto pela igreja. Surgiu então a pergunta: A igreja deve basear suas convicções e práticas do Novo Testamento na Vulgata Latina, cuja tradução apresenta deficiências, ou deve recorrer ao texto grego original?

O CANON NA REFORMA E PÓS-REFORMA

Influenciados pelo humanismo, os reformadores acompanharam essas mudanças e responderam a essas perguntas do seguinte modo: em primeiro lugar, o Antigo Testamento da igreja deveria se basear na Bíblia hebraica mais curta, e não na Septuaginta com seus livros apócrifos. Essa decisão se baseava no fato de que as Escrituras judaicas, com seus 22 (ou 24) livros, havia sido a Palavra de Deus que Jesus e os discípulos usaram; assim, essa versão mais curta deveria ser considerada a Bíblia da igreja. Além disso, alguns escritos apócrifos continham informações históricas ou cronológicas incorretas, e muitos não tinham sido considerados confiáveis pela igreja primitiva.[52] Desse modo, os reformadores descartaram os Apócrifos do Antigo Testamento canônico.

Em segundo lugar, adotando a distinção clássica de Jerônimo, os reformadores insistiam que a igreja pode apelar somente às Escrituras para estabelecer suas convicções e práticas. Como os Apócrifos não eram canônicos, não se poderia usá-los como base para as doutrinas da igreja. Isso significava que crer no purgatório e orar pelos mortos eram práticas sem fundamento bíblico e deviam ser interrompidas. Ao menos para alguns reformadores, no entanto, os Apócrifos tinham certo valor. Martinho Lutero disse que Judite era “um livro com qualidades, bom, útil, cuja leitura era de grande valor para cristãos”.[53]

Ele também elogiou Sabedoria de Salomão: “Agrada-me sobremaneira que o autor aqui exalte a Palavra de Deus a ponto de lhe atribuir todos os prodígios que Deus realizou, tanto em seus inimigos como em seus santos”.[54] Desse modo, a leitura dos Apócrifos era incentivada, mas não a definição de doutrinas com base em sua autoridade. Os reformadores retomaram a distinção de Jerônimo e a promoveram.

Em terceiro lugar, os reformadores insistiam que, assim como o Antigo Testamento da igreja devia se basear na Bíblia hebraica, o Novo Testamento devia ter como base o original grego. Se as convicções e práticas da igreja estiverem baseadas na tradução deficiente da Vulgata Latina, elas precisarão ser modificadas ou abolidas.

Assim, em 31 de outubro de 1517, quando Lutero iniciou a Reforma afixando suas Noventa e Cinco Teses na porta da igreja da universidade de Wittemberg, na Alemanha, ele começou com estes dois pontos:

• Quando nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo diz: ״Arrependei-vos” (Mt 4.17), ele quer que toda a vida dos que creem seja arrependimento.

• Essa palavra de arrependimento não pode ser entendida como se referindo ao sacramento da penitência (isto é, à confissão e reparação) administrada pelos sacerdotes.[55]

Em sua explicação desses pontos, Lutero usou “a própria palavra grega metanoeite, que significa “arrependei-vos” e que se poderia traduzir de modo mais exato pelo verbo em latim transmentamini, que significa “adquiri outra mente e sentimento, voltai ao juízo, fazei a transição de uma mentalidade para outra, realizai uma mudança de espírito”.[56]

Essa descoberta deu início a um processo que culminou na rejeição de Lutero à penitência como sacramento da igreja.[57] Acima de tudo, ela estabeleceu que o fundamento do Novo Testamento canônico da igreja precisava ser o original em grego e não a Vulgata Latina. Contrariando a expansão da autoridade da Igreja Católica Romana na época medieval, os reformadores rejeitaram a alegação de autoridade da igreja acima das Escrituras. O princípio formal do protestantismo era o sola Scriptura — somente as Escrituras. Entre outras coisas, isso significava que ״as Escrituras sagradas e bíblicas, pelo fato de serem a Palavra de Deus, têm reputação e credibilidade suficientes em si mesmas e por sua própria natureza”.[58]

Assim, a Bíblia não necessita que a igreja lhe confira autoridade. No que diz respeito à canonicidade, isso significava que a igreja não estabeleceu o cânon das Escrituras. Aliás, João Calvino fez uma crítica mordaz[59] a essa posição, desafiando a hierarquia católica romana a provar que foi a igreja quem estabeleceu o cânon das Escrituras.[60] Citando Paulo, Calvino afirmou que a igreja “está edificada sobre o fundamento dos apóstolos e dos profetas” (Ef 2.20); assim, as Escrituras precedem a igreja e não devem sua existência à autoridade desta.[61]

A igreja reconheceu e confirmou os escritos divinamente inspirados que Deus pretendia que fossem incluídos no cânon, mas ela não criou nem determinou o cânon das Escrituras. Como, então, a igreja reconhece as Escrituras canônicas? Calvino apontou ״para o testemunho íntimo do Espírito” e para os “claros sinais de veracidade” contidos nas próprias Escrituras:[62]

Que esta verdade fique, portanto, bem clara: aqueles a quem o Espírito Santo ensinou interiormente de fato descansam na Escritura, e essa Escritura é de fato autoautenticada […] E a confiabilidade que lhe devemos ela obtém pelo testemunho do Espírito […] Portanto, iluminados por seu poder [do Espírito], cremos, baseados no juízo não de nós próprios nem de mais ninguém, que a Escritura procede de Deus; mas, independentemente da opinião humana, dizemos com plena certeza (exatamente como se estivéssemos contemplando a majestade do próprio Deus) que ela flui para nós da boca de Deus por intermédio do ministério de homens.[63]

Tanto o Espírito Santo como as próprias Escrituras dão testemunho das Escrituras canônicas, que consistem no Antigo Testamento, baseado na Bíblia hebraica, não na Septuaginta, e no Novo Testamento. Assim, os livros apócrifos precisam ser excluídos do cânon. As confissões protestantes sublinharam isso. Por exemplo, a Confissão de Fé Francesa de 1559, depois de listar os livros canônicos do Antigo e do Novo Testamento, declarou:

״Sabemos que esses livros são canônicos e que são a regra segura de nossa fé, não tanto pelo comum acordo e consenso da igreja, mas antes pelo testemunho e iluminação interna do Espírito Santo, que nos permite distingui-los de outros livros eclesiásticos sobre os quais, por mais úteis que sejam, não podemos fundamentar quaisquer artigos de fé”.[64]

A Confissão de Fé de Westminster, depois de listar os livros canônicos, acrescentou:

“Os livros comumente chamados de Apócrifos, não sendo de inspiração divina, não fazem parte do cânon das Escrituras e, portanto, não têm autoridade na igreja de Deus, de modo algum se devendo aprová-los, ou usá-los, de maneira diferente do que quaisquer outros escritos humanos”.[65]

Desse modo, a igreja protestante adotou os sessenta e seis livros em suas Escrituras canônicas e rejeitou os Apócrifos.[66]

No Concilio de Trento, a Igreja Católica Romana reagiu a essa rejeição protestante dos Apócrifos. O concilio tentou corrigir os “erros” protestantes, reafirmando o cânon católico das Escrituras, que incluía os livros apócrifos. Um decreto conciliar fez esta advertência:

“Se alguém não recebe esses livros como sacros e canônicos, com todas as suas partes, como foram lidos na Igreja Católica e como estão contidos na antiga edição da Vulgata Latina, e consciente e deliberadamente rejeita as tradições mencionadas acima, seja ele anátema [amaldiçoado]”[67].

Assim, os protestantes foram ameaçados com condenação da igreja por usar a Bíblia sem os Apócrifos. Apesar dessas ameaças, as igrejas protestantes continuaram insistindo em uma Escritura canônica que não contivesse os Apócrifos.[68]

Além disso, a autoridade desses livros canônicos derivava de três fontes importantes, porém de pesos diferentes:

“A autoridade canônica das Escrituras […] vem primeiramente do Espírito Santo, por cujo impulso e inspiração elas foram geradas; em seguida, dos autores a quem Deus forneceu testemunhos seguros e especiais da verdade. Depois disso, elas derivam sua autoridade da igreja primitiva, como testemunha em cuja época se publicaram e aprovaram esses escritos”.[69]

Além dessas três fontes que confirmam a canonicidade dos livros bíblicos temos o testemunho interno do próprio Espírito Santo acerca de sua autoridade canônica:

“A autoridade canônica das Escrituras, consideradas em relação às suas doutrinas, é provada por critérios externos e internos, mas especialmente pelo testemunho interno do Espírito Santo, que ilumina a mente dos homens enquanto atentamente leem as Escrituras ou as ouvem da boca de um mestre”.[70]

Desse modo, os pós-reformadores continuaram a defesa do cânon protestante das Escrituras iniciada por Lutero, Calvino e outros reformadores.

O CÂNON NO PERÍODO MODERNO

De modo geral, essa divergência entre protestantes e católicos a respeito do que constitui o cânon das Escrituras continua até mesmo em nossa época. Não se deve ignorar, no entanto, o ponto de convergência de que tanto o Antigo Testamento como o Novo Testamento compõem o cânon bíblico.

No período moderno, esse consenso foi algumas vezes questionado. Por exemplo, Friedrich Schleiermacher relegou o Antigo Testamento a uma posição secundária. Ele observou o consenso entre os cristãos de que existe uma grande diferença entre o Antigo e o Novo Testamento, e negou até mesmo que os Profetas e os Salmos pudessem colaborar para a maturidade cristã. Ele afirma que, quando os cristãos prestam atenção no Antigo Testamento, seu cristianismo se infecta com legalismo, e eles podem encontrar pouco fundamento para doutrinas cristãs.

Além disso, Schleiermacher afirmava que o fato de Cristo e os apóstolos terem citado o Antigo Testamento não estabelecia um precedente para os cristãos; aliás, ele se refere a “uma retirada gradual” do Antigo Testamento, após o surgimento do Novo, e propôs que “o significado real dos fatos seria mais claro se o Antigo Testamento fosse um apêndice do Novo”.[71]

Assim, para Schleiermacher, “as Escrituras do Antigo Testamento não […] compartilham da dignidade normativa nem da inspiração do Novo”.[72]

A negação da canonicidade do Antigo Testamento foi uma exceção, não a regra. Os maiores desafios à compreensão histórica do cânon pela igreja surgiram com rapidez e intensidade à medida que a época moderna prosseguia. Com a ascensão da crítica histórica observou-se o surgimento de uma enorme desconfiança quanto à autoria da maior parte dos livros bíblicos, o que conduziu ao fim da visão tradicional do cânon.

Por exemplo, Hugo Grotius questionou a autoria petrina de 2Pedro e a autoria salomônica de Eclesiastes. De modo semelhante, Baruch Spinoza (seguido por Jean LeClerc e muitos outros) contestou a autoria mosaica do Pentateuco.

Também a (suposta) distinção entre a Bíblia e a Palavra de Deus, outro princípio fundamental da crítica histórica, arrasou o consenso tradicional. Em sua obra importante, Treatise on the free investigation of the canon [Tratado sobre a livre investigação do cânon] (1771-1775), Johann Salomo Semler explicou: “Certamente se deve distinguir entre as Sagradas Escrituras e a Palavra de Deus, pois conhecemos a diferença […] Às Sagradas Escrituras (usando a expressão histórica particular que se originou entre os judeus) pertencem Rute, Ester, o Cântico dos Cânticos etc., mas nem todos os livros chamados sagrados pertencem à Palavra de Deus, que em todas as épocas torna todos os homens aptos para a salvação”.[73]

Quando a crítica histórica levou os estudiosos a tratar a Bíblia meramente como mais um livro humano, a ideia de canonicidade dos livros bíblicos passou a ser considerada uma ação completamente humana, negando-se qualquer superintendência divina no processo. A obra seminal desse pensamento foi a introdução ao Antigo Testamento, de Johann Gottfried Eichhorn.[74] Lamentando o fato de que se tenha chegado a usar o termo cânon, Eichhorn abordou o processo de reunião dos vários livros do Antigo Testamento como um desdobramento puramente histórico. Muitos que seguiram Eichhorn aceitaram essa premissa básica e analisaram o cânon do Antigo (e do Novo) Testamento como resultado de uma iniciativa meramente humana.[75]

Posicionando-se contra essa tendência, evangélicos afirmaram a visão tradicional de canonicidade com algumas modificações. B. B. Warfield, por exemplo, repetiu a visão protestante comum do processo histórico por meio do qual a igreja reconheceu certos livros como canônicos. Em especial, ele afirmou que “em todos os casos, o prinrípio para aceitar um livro, ou para eliminar dúvidas em relação a ele, era a tradição histórica de apostolicidade”.[76]

No entanto, Warfield expressou uma nova ideia de apostolicidade: não se devia compreendê-la como referência à redação de livros canônicos do Novo Testamento pelos apóstolos, mas sim à determinação do cânon exato das Escrituras realizada pelos próprios apóstolos.[77]

Empregando uma abordagem histórico-salvífica da canonicidade das Escrituras, Herman Ridderbos iniciou sua análise com uma pressuposição de fé em Jesus Cristo e de sua delegação de autoridade aos apóstolos, fundamento de sua igreja: “A autoridade de Deus de modo algum se limita às suas obras poderosas em Jesus Cristo, mas […] também se estende à sua proclamação nas palavras e escritos daqueles especialmente designados como condutores e instrumentos autorizados da revelação divina. A tradição escrita que os apóstolos estabeleceram, por analogia com os escritos do Antigo Testamento, passa desse modo a ser considerada fundamento e norma da igreja futura”.[78]

Dessa pressuposição de autoridade cristológica e apostólica flui o princípio de prioridade cristológica e apostólica em análises do cânon: Jesus Cristo autorizou os apóstolos a serem suas testemunhas e a escreverem os documentos fundamentais com peso de autoridade e com base nos quais se fundou a igreja. Desse modo, “o cânon em seu sentido histórico-redentor não é produto da igreja; pelo contrário, a própria igreja é produto do cânon”.[79]

O segundo princípio fundamental que flui dessa pressuposição é que o cânon está concluído.[80]

À medida que a crítica histórica crescia, e com ela a abordagem histórico-crítica do cânon das Escrituras, surgia também a oposição a ele. A consciência do cânon que Brevard Childs apresentou merece uma menção especial. Em relação a essa abordagem histórico-crítica do Antigo Testamento, Childs faz três críticas mordazes.

A primeira se concentrava na ênfase equivocada dessa visão na história da literatura hebraica e não no próprio texto canônico.[81]

A segunda criticava a abordagem histórico-crítica pela falta de percepção do papel das Escrituras canônicas na vida de Israel.[82]

A última crítica apontava para o fato de que essa abordagem desconsiderava por inteiro todos os fatores religiosos que influenciaram a formação do cânon do Antigo Testamento.

Para Childs, ao contrário, “um fator fundamental na história de Israel é que a literatura formava a identidade da comunidade religiosa que, por sua vez, moldava a literatura”.[83] Childs estende sua crítica às discussões sobre o cânon do Novo Testamento influenciadas pela crítica histórica.[84] Passando da crítica a uma proposta construtiva, Childs enfatiza uma abordagem canônica das Escrituras cujo foco é a forma definitiva e canônica do Antigo e do Novo Testamento segundo recebidos pela igreja.[85]

O impacto de Childs sobre os evangélicos foi grande. Em especial, eles compreenderam sua ênfase na forma canônica definitiva do texto bíblico como foco e justificativa para fazer teologia bíblica.[86] Mas Childs também influenciou estudiosos evangélicos em sua compreensão do desenvolvimento do cânon.

Por exemplo, John Sailhamer, seguindo os passos de Childs, esboçou três processos importantes que conduziram à “forma definitiva” do Antigo Testamento:

Composição. A noção de autoria representa um momento decisivo na história de um texto. Segundo essa perspectiva sobre a forma definitiva, não se enxerga a composição como um processo dinâmico nem como estado rígido. A composição de um livro bíblico […] representa um momento criativo e decisivo na história do texto.

Canonização. A canonização […] olha para o momento em que o livro se torna parte de uma compilação maior e contribui para sua forma geral […] Isso significa que, em relação à definição clássica de autoria, é necessário levar a sério a forma do cânon do Antigo Testamento como um todo e integrá-la a nosso modelo textual. Não só os livros da Bíblia hebraica têm autores, mas também a Bíblia hebraica como um todo, e como cânon é produto de composição e autoria.

Consolidação. Aqui os olhares se voltam para o desenvolvimento posterior de um texto canônico em determinada comunidade […] A noção de consolidação significa que, uma vez que textos se tornam parte de uma comunidade, eles adquirem características essenciais dessa comunidade.[87]

Assim, Sailhamer tentou expressar as implicações do trabalho inovador de Childs sobre a consciência canônica e aplicá-las a uma posição evangélica sobre o desenvolvimento do cânon. Desse modo, o movimento evangélico adota hoje muitas abordagens em relação ao cânon.

Representando uma posição evangélica em crescimento, David Dunbar observou vários elementos importantes em uma sólida doutrina da canonicidade das Escrituras. A exemplo de Ridderbos, Dunbar enfatizou o desenvolvimento cristológico ou histórico-salvífico do cânon:

“O testemunho apostólico oral e escrito acerca de Cristo era a fonte da qual a igreja primitiva extraía sua vida. O processo pelo qual a forma escrita desse testemunho se tornou cada vez mais proeminente e aos poucos se definiu na compreensão canônica da igreja foi tanto natural como espontâneo. Grande parte desse processo já estava em andamento antes mesmo de a comunidade cristã ter consciência de suas implicações”.[88]

Em relação ao critério de canonicidade, Dunbar explica: De modo geral, a igreja considerava a apostolicidade como fator qualificador de reconhecimento canônico; no entanto, não se deve entender a apostolicidade estritamente em relação à autoria, mas também da perspectiva de conteúdo e cronologia. O cânon precisava incluir a tradição apostólica, e essa tradição deveria ser identificada nos documentos mais antigos: “os testemunhos normativos precisam vir do período mais próximo de Cristo, a saber, a época das origens cristãs, dos apóstolos e de seus discípulos”.

O reconhecimento dessa apostolicidade, além disso, se baseava sobretudo na tradição da igreja. Os livros que haviam servido de autoridade para os primeiros cristãos foram recebidos como tradição apostólica autêntica.[89] Uma implicação importante para as análises canônicas de hoje é que “o cânon, em princípio, está concluído”.[90]

Além do mais, para Dunbar, as discussões sobre canonicidade precisam ir além de considerações históricas e incluir a afirmação da obra providencial de Deus no processo canônico.[91]

Concluindo, Dunbar afirma: “Os primeiros cristãos acreditavam saber onde encontrar o cânon de Cristo e dos apóstolos. Hoje ainda cremos nisso”.[92] É possível perceber a importância que os evangélicos dão a esse assunto pelo fato de que o tema da reunião nacional da Evangelical Theological Society [Sociedade Teológica Evangélica] de 2008 foi o cânon das Escrituras.[93] Em resumo, a igreja protestante, com suas raízes na Reforma e seguindo a orientação da igreja primitiva, adota um cânon de 39 livros do Antigo Testamento, que nâo incluem os Apócrifos, e 27 livros do Novo Testamento.

Fonte: Gregg R. Allison. Teologia histórica: uma introdução ao desenvolvimento da doutrina cristã / Gregg R. Allison; tradução de Daniel Kroker e Thomas de Lima. — São Paulo: Vida Nova, 2017. 928 p. 60-70.

Leia todas as partes desta pesquisa (em contrução):

I. Teologia Histórica – A composição do Cânon Bíblico (Igreja Primitiva do Novo Testamento)

II. Teologia Histórica – A composição do Cânon Bíblico (Séculos 2 ao 5)

III. Teologia Histórica – A composição do Cânon Bíblico (da Idade Média à Modernidade)

Notas:

[47] Narrada com mais detalhes no cap. 4.

[48] Guido Terreni, Questio de magistério infallibili, in: Tavard, p. 32.

[49] Gabriel Biel, In defense of apostolic obedience, p. 1, in: Pelikan, 3:125.

[50] Veja uma excelente introdução ao humanismo em Alister E. McGrath, Reformation thought: an introduction, 3. ed. (Oxford/Cambridge: Blackwell, 1999), p. 39-65.

[51] Jerônimo, Preface to the books of Proverbs, Ecclesiastes, and the Song of Songs, in: NPNF2, 6:492.

[52] E.g., Lutero rejeitou 1Macabeus e os acréscimos a Ester e Daniel porque eles não apareciam na Bíblia hebraica. Descartou Judite e Tobias por causa de seus relatos históricos incorretos, e Baruque por suas incoerências cronológicas. Rejeitou Sabedoria de Salomão e Eclesiástico por não serem citados na igreja primitiva. Martinho Lutero, Prefaces to the Apocrypha, LW, 35:337-54.

[53] Ibidem, p. 339.

[54] Ibidem, p. 343.

[55] The ninety-five theses, LW, 31:25-33.

[56] Explanations of the ninety-five theses, LW, 31:83-4.

[57] The Babylonian captivity of the church, LW, 36:5-126.

[58] Heinrich Bullinger, The opposition of evangelical and papal doctrine, 1. A.1 (Zurich, 1551), Pelikan, 4:208.

[59] João Calvino, Institutes oft he Christian religion, 4.9.14־ LCC, 2:1178-9 [edições em português: As institutas, tradução de Waldyr Carvalho Luz (São Paulo: Cultura Cristã, 2006), 4 vols., e A instituição da religião aistã, tradução de Carlos Eduardo Oliveira; José Carlos Estêvão (São Paulo: Ed. Unesp, 2008), 2 vols.].

[60] Ibidem, 1.7.3, LCC, 1:76-8.

[61] Ibidem, 1.7.2, LCC, 1:75-6. Essa também era a posição de Lutero: “As Escrituras são o ventre de onde nascem a verdade divina e a igreja”. First lectures on the Psalms, IW, 10:397.

[62] Calvino, Institutes, 1.7.4; 1·7-2, LCC, 1:78,76.

[63] Ibidem, 1.7.5, LCC, 1:80.

[64] João Calvino; Antoine de la Roche Chandieu, Gallican confession, art. 4, in: Schaff, 3:361-2. De modo semelhante, a Confissão Belga de Guy de Bray (1561), depois de listar as Escrituras canônicas, acrescenta: “Recebemos todos esses livros, e somente esses, como santos e canônicos, para a regulamentação, fundamento e confirmação de nossa fé; crendo sem qualquer dúvida em todas as coisas neles contidas, não tanto porque a igreja os recebe e aprova como tais, porém, mais especificamente, porque o Espírito testemunha em nosso coração que eles são de Deus, motivo pelo qual eles contêm as evidências em si mesmos” . “Belgic Confession”, art. 5-6, in: Schaff, 3:386-7 [edição em português: Confissão belga e catecismo de Heidelberg (São Paulo: Cultura Cristã, 1999)].

[65] “Westminster Confession of Faith”, 1.2-3 [edição em português: A confissão de fé de Westminster (São Paulo: Cultura Cristã, 2017)]. Assim também a Confissão Belga, referindo-se aos livros apócrifos, observa: ״Todos os quais a igreja pode ler e dos quais pode adquirir instrução, contanto que concordem com os livros canônicos; mas eles estão longe de ter tal poder e eficácia que possamos de seu testemunho confirmar qualquer ponto da fé ou da religião cristã, muito menos enfraquecer a autoridade de quaisquer outros livros sagrados”. “Belgic Confession”, art. 6, Schaff, 3:387.

[66] O caso notório do problema de Martinho Lutero com a carta de Tiago de modo algum era típico do protestantismo em geral. Ele a chamou de “epístola de palha” (LW, 35:362) e sentenciou: “Fora com Tiago. Eu quase tenho vontade de jogar Tiago na fornalha […]” (LW, 34:317). Na verdade, Lutero situou Hebreus, Tiago, Judas e Apocalipse no final de seu Novo Testamento porque tinha fortes dúvidas sobre a sua apostolicidade. Ele também reconheceu o conflito que a igreja primitiva travou para incluir esses livros no cânon. Assim, ele considerou 23 livros “como livros fundamentais, verdadeiros e seguros do Novo Testamento”, ao passo que relegou esses quatro livros a um nível inferior. Ele negava que Paulo fosse o autor de Hebreus e encontrava dificuldade com algumas passagens que pareciam “contradizer todos os evangelhos e todas as epístolas de São Paulo”. Tiago não somente não tinha autoria apostólica; ele também não passava pelo teste mais decisivo: não “enfatizava Cristo”. “Todos os livros sagrados genuínos concordam no aspecto de que todos pregam e apresentam [treiben: enfatizam, sublinham] Cristo. E este é o teste verdadeiro para julgar todos os livros, quando vemos se apresentam ou não Cristo”. Tiago também entrava em conflito com o restante da Bíblia: “Está diretamente contra São Paulo e o restante das Escrituras ao atribuir a justificação às obras (Tg 2.24)”. Judas não estava à altura do cânon pelo fato de ser “cópia exata da segunda epístola de São Pedro” e porque “cita palavras e acontecimentos que não se encontram em nenhum outro lugar nas Escrituras” (Jd 9,14). Os problemas de Lutero com Apocalipse provinham de sua ausência de clareza: “Os apóstolos não lidam com visões, mas profetizam com palavras claras e compreensíveis […]. Pois condiz com o ofício apostólico falar claramente de Cristo e de seus feitos, sem imagens e visões […] De modo algum consigo detectar que o Espírito Santo o tenha produzido”. Prefaces to the New Testament, LW, 35:394-9.

[67] “Canons and Decrees of the Council o f Trent”, sessão 4 (April 8,1546), Decree concerning the canonical Scriptures, Schaff, 2:80. Texto adaptado para fins de maior clareza.

[68] Martin Chemnitz, Examination of the Council of Trent, tradução para o inglês de Fred Kramer, pt. 1. sec. 6 (St. Louis: Concordia, 1971), p. 168-95.

[69] Ibidem, p. 176.

[70] David Hollaz, Examen theologicum acroamaticum (1707), p. 126, in: Schmid, p. 84.

[71] Friedrich Schleiermacher, The Christian faith, organização de H. R. Mackintosh; J. S. Stewart (1928; reimpr., Edinburgh: T&T Clark, i960), p. 610-1.

[72] Ibidem, p. 608.

[73] Johann Salomo Semler, Treatise on the free investigation of the canon, citado em David G. Dunbar, “The biblical canon”, D. A. Carson; John D. Woodbridge, orgs., Hermeneutics, authority and canon (Grand Rapids: Zondervan/Baker, 1986/1995), p. 344-5.

[74] Johann Gottfried Eichhorn, Einleitungin das Kite Testament (Leipzig: Weidmanns, 1803), 3 vols.

[75] Um exemplo recente dessa tendência é James Barr, The Bible in the modem world (London: SCM, 1 9 7 3 ,1990)־ Ρ· 118-20.

[76] B. B. Warfield, The inspiration and authority of the Bible, edição de Samuel G. Craig (Phillipsburg: P&R, 1948), p. 415 [edição em português: A inspiração e autoridade da Bíblia, tradução de Maria Judith Prado Menga (São Paulo: Cultura Cristã, 2010)].

[77] “Que fique claro que, na avaliação das igrejas primitivas, não era exatamente a autoria apostólica o fator que definia um livro como parte do cânon […] Desde o inicio não foi assim. O princípio da canonicidade não era a autoria apostólica, mas a imposição dos apóstolos como ‘lei'” . Ibidem.

[78] Herman Ridderbos, The authority of the New Testament Scriptures (Grand Rapids: Baker, 1963), p. 27. Minha discussão de Ridderbos segue os contornos da apresentado de David Dunbar em “Biblical Canon”, p. 352-5.

[79] Ridderbos, Authority of the New Testament Scriptures, p. 27.

[80] O enfoque de pressuposição de Ribberdos não ignora o processo complexo e às vezes intermitente pelo qual o cânon bíblico passou a existir. Contudo, ele enfatiza a promessa divina feita por Jesus de construir a sua igreja sobre a confissão apostólica (Mt 16.18) como chave para compreender corretamente esse desenvolvimento histórico: “Não se deve separar a incondicionalidade do cânon da relatividade da história. É verdade, no entanto, que devemos enxergar a história do cânon à luz desse elemento a priori da fé; e devemos enxergá-la como uma história em que se desenvolve não somente o poder do pecado e do erro humano, mas, acima de tudo, a promessa de Cristo de edificar e estabelecer sua igreja sobre o testemunho dos apóstolos”. Ibidem, p. 41.

[81]Brevard S. Childs, Introduction to the Old Testament as Scripture (Philadelphia: Fortress, 1979), p. 40.

[82] Ibidem.

[83] Ibidem, p. 41.

[84] Brevard S. Childs, The New Testament as canon: an introduction (Valley Forge: Trinity, 1994), p. 21.

[85] Childs, Introduction to the Old Testament, p. 73; New Testament as canon, p. 48. Childs foi criticado por James Barr, The concept of biblical theology: an Old Testament perspective (Minneapolis: Augsburg Fortress, 1999), p. 378 -438.

[86] Exemplo disso é Paul House, cuja Old Testament theology, entre outras coisas, “dedicava-se à busca da totalidade da mensagem do Antigo Testamento”. Paul R. House, Old Testament theology (Downers Grove: interVarsity, 1998), p. 57 [edição em português: Teologia do Antigo Testamento, tradução de Márcio Redondo; Sueli Saraiva (São Paulo: Vida, 2005)].

[87]John H. Sailhamer, ״Biblical theology and the composition of the Hebrew Bible”, Scott J. Hafemann, org., Biblical theology: retrospect and prospect (Downers Grove: interVarsity, 2002), p. 27-31.

[88] Dunbar, “Biblical canon”, p. 357. 85Ibidem, p. 358. Dunbar citou Hans F. von Campenhausen, Formation of the Christian Bible (Philadelphia: Fortress, 1972), p. 330.

[90] Ibidem, p. 358.


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(Hendrickson Rogers)

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